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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O convencimento baseado em indícios: verdade, vestígio e narrativa.

Indício é o fato conhecido que, por via de raciocínio, sugere o fato probando, do qual é causa ou efeito. O indicio, por si só, não tem qualquer valor probatório. No entanto, como causa ou efeito de outro fato, suscita o indício uma operação por via da qual poder-se-ia chegar ao conhecimento desse outro. Trata-se de mecanismo útil para a prova de fatos de difícil verificação ou ocorrência, bem como para a prova de fatos futuros, como no caso das demandas preventivas. O convencimento baseado em indícios perpassa, necessariamente, pela dicotomia entre a verdade real e a verdade processual. Acerca do tema, oportuna é a referência ao escritor João Ubaldo Ribeiro, que em seu livro Viva o Povo Brasileiro sentencia que o segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só histórias. A verdade é algo inatingível, notadamente no âmbito processual carregado de influencias extrínsecas e limitado por um lapso temporal razoável dentro do qual a decisão há de ser proferida. A prova não tem o condão de reconstituir o evento pretérito; não se pode voltar no tempo. Assim é que a verdade real é meta inatingível, até porque, além da justiça, há outros valores que presidem o processo como a segurança e a efetividade: o processo precisa acabar. O mais correto parece ser entender a verdade buscada no processo como aquela mais próxima possível do real, da própria condição humana, a chamada verdade possível ou verossimilhança. As narrativas das partes, nessa seara, podem ser diversas e ainda assim, ambas verdadeiras, uma vez que reconstruídas sob o olhar da subjetividade humana. Com efeito, considerando que vigora no ordenamento jurídico o princípio do livre convencimento motivado, em regra cabe ao juiz conferir o peso probatório que entender devido aos vestígios e às narrativas fáticas, bem como realizar operações mentais por meio dos indícios e presunções, desde quem em observância ao dever constitucional de fundamentar suas decisões, na forma do art.93, IX da CF

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Fundamentos constitucionais à desapropriação

1. INTRODUÇÃO

No presente estudo, serão analisados os aspectos constitucionais da desapropriação sob um viés eminentemente axiológico, no sentido de atentar para os valores destacados pelo constituinte nos institutos envolvidos, seja na preservação do direito individual à propriedade, seja na concretização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, tais como a redução das desigualdades sociais e regionais.

Interessa pontuar que este trabalho, em que pese demandar uma análise técnica das exigências constitucionais à retirada compulsória da propriedade particular, não prescinde da consideração de que se trata de tema diretamente ligado ao supra direito da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental expressamente elencado no art.1º da Constituição Federal.

Numa primeira parte, o direito à propriedade será apresentado topograficamente no texto constitucional, dada a importância desta abordagem numa constituição cujos dispositivos foram posicionados obedecendo-se a uma ordem de importância, como inegavelmente se dá com Carta Magna de 1988. Noutras palavras, não se pode desconsiderar que a ordem na qual os direitos e garantias foram dispostos demonstra sua relevância aos olhos do constituinte. O tema da propriedade também é explorado sob o aspecto histórico, no sentido de representar um dos estandartes do Estado Liberal, integrando o rol dos direitos de primeira dimensão. Ainda neste capítulo, a hermenêutica constitucional será empregada como solução aos aparentes conflitos axiológicos que emergem, principalmente, de constituições analíticas.

A etapa subseqüente do trabalho cuidará do instituto da desapropriação como uma limitação ao direito de propriedade, cuja relatividade já terá sido verificada a partir do estudo hermenêutico da constituição. Não se olvida, porém, a necessidade de delinear os “limites dos limites” aos direitos assegurados no Texto Maior. Disto decorrem os requisitos a serem observados no procedimento de desapropriação, regulamentados por lei federal. Ademais, os princípios que regem a atuação da administração pública deverão ser observados, sob pena de ilegitimidade da atuação estatal. Nesse ponto, impende elencar as medidas administrativas e judiciais de que poderá o particular se vale face a uma desapropriação irregular.

A conclusão do artigo se pautará na resposta ao problema proposto, referente à possibilidade de a desapropriação se coadunar com os valores constitucionalmente consagrados e sobre o modo como poderá ser empregada na efetivação dos direitos individuais e sociais, tendo-se em vista a dignidade da pessoa humana.

2. PROBLEMA DE PESQUISA


A problemática que se apresenta a partir da análise dos requisitos constitucionais da desapropriação cinge-se à possibilidade de se compatibilizar o direito individual à propriedade, cuja relevância fez com que o constituinte originário o encapsula-se no rol das cláusulas pétreas, com o procedimento expropriatório, dado que este se revela como uma restrição àquele direito.

Indaga-se, ainda, sobre a hipótese de a desapropriação figurar como ferramenta de transformação social sem comprometer a segurança jurídica decorrente da garantia ao direito de propriedade.


3. OBJETIVO

O objetivo é demonstrar que a desapropriação, quando realizada em consonância com os preceitos constitucionais, revela-se um importante instrumento de concretização dos valores fundamentais e inerentes ao Estado Constitucional de Direito.

4. METODOLOGIA

Antes da pesquisa específica do tema, recorreu-se a fontes doutrinárias voltadas à breve digressão histórica e situação do tema dentro dos aspectos principiológicos. Em seguida, a fim de se obter uma resposta satisfatória sobre o questionamento propulsor deste trabalho, qual seja, se a Constituição Federal apresenta fundamentos suficientes para lastrear o procedimento expropriatório, optou-se por, inicialmente, elencar os dispositivos da Carta Magna que diretamente versassem sobre o tema.

Com base na literalidade constitucional, foram identificados os institutos mais relevantes para então se buscar base doutrinária no estudo de cada um deles. Ao lado da visão de autores constitucionalistas, pretendeu-se implementar uma análise crítica mais independente, a partir de conhecimentos e reflexões prévias sobre a matéria.

Ao lado disso, algumas decisões mais relevantes proferidas pelo STJ e STF foram mencionadas a fim de demonstrar a forma de aplicação prática que os tribunais vêm atribuindo ao tema.

Por fim, optou-se por breves digressões quanto aos aspectos infra-legais, pautados no direito administrativo, como forma de complementar a pesquisa que, conforme delimitado, tem um olhar preponderantemente constitucional.


5. REFERENCIAL TEÓRICO


O presente trabalho destina-se à análise dos fundamentos constitucionais da desapropriação. Disto infere-se que extrapolaria a delimitação do tema adentrar nos aspectos pormenorizados do procedimento expropriatório descrito no Decreto-Lei 3.365/41, não se prescindindo, contudo, do estudo técnico dos procedimentos descritos no texto constitucional.

Os conceitos e detalhes eminentemente administrativas servem, portanto, de apêndice ao enfoque constitucional. Para tanto, socorreu-se do Curso de Direito Administrativo de Celso Antônio Bandeira de Mello e do livro Direito Administrativo de Flávia Cristina de Moura Andrade.

Com o fito de verificar de forma sistematizada os dispositivos constitucionais de interesse à pesquisa, optou-se pela obra objetiva e clara dos professores Dirley da Cunha Jr e Marcelo Novelino, intitulada Constituição Federal para Concursos, a qual foi de valorosa utilidade por apresentar decisões recentes sobre a matéria e analisar individualmente os dispositivos constitucionais. A partir desta obra, foi possível identificar recente decisão do STJ sobre a classificação do que seria pequena propriedade rural para fins de desapropriação por interesse social, por exemplo.

O clássico Curso de Direito Constitucional Positivo de José Afonso da Silva destinou-se à análise pormenorizada da visão doutrinária incidente sobre a função social da propriedade, tema que apresenta alguma controvérsia entre os autores, a exemplo de Manoel Jorge e Silva Neto, constitucionalista baiano que apresenta visão dissidente neste particular, em seu livro Curso de Direito Constitucional, citado nesse trabalho.

A obra do professor Pedro Lenza, Direito Constitucional Esquematizado serviu para lastrear a digressão histórica da progressividade do IPTU como medida extra-fiscal de efetivo implemento da função social da propriedade.

Os informativos de recentes decisões do STF e STJ também foram importantes para conferir uma visão atualizada do tratamento jurisprudencial dos temas.

6. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA DESAPROPRIAÇÃO

Por conta das atrocidades cometidas sob o manto da legalidade positivista, revelou-se necessária a adoção de outro modelo Estatal, orientado pelo respeito à dignidade humana, e apto a reaproximar o conceito de justiça ao de direito. Trata-se do chamado Estado Constitucional de Direito, baseado no neo-constitucionalismo, que traz como um dos seus principais vetores a noção de onipresença da Constituição em todas as áreas jurídicas.

Com base nessa nova concepção jurídico-filosófica, emerge o Estado Constitucional Democrático como proposta de superação do Estado Liberal, o qual se revelou insuficiente na efetivação de direitos sociais aptos a lastrear o desenvolvimento não apenas econômico, mas propriamente humano, na sua concepção mais ampla.

Nesse contexto, imperiosa a análise do direito de propriedade, um dos grandes símbolos do Estado Liberal, agora sob o enfoque principiológico e coerente com o atual modelo político- constitucional.

Por se inserir no rol dos direitos fundamentais de primeira dimensão, a propriedade revela-se como direito limitativo à ingerência do poder público, o qual, uma vez contextualizando com a presente realidade, não pode ser concebido tão-somente como um direito à abstenção estatal, mas também como um comando voltado à sua efetiva implementação.

Conforme mencionado, o pós-positivismo representa a superação da garantia formal dos direitos humanos, para buscar não apenas a sua concretização social a partir de uma postura ativa do Estado, mas também a sua inserção como instrumental à dignidade da pessoa humana. A propriedade, nesse diapasão, há de ser concebida, cumulativamente, como um direito a não intervenção abusiva por parte do poder público, uma garantia aos cidadãos que dela são desprovidos (os hipossuficientes) e limitada pelo cuidado com a preservação do basilar valor da dignidade da pessoa humana.

No particular, tem-se que tamanha é a relevância do direito de propriedade que o constituinte pátrio cuidou de elencá-la no próprio caput do artigo 5º da Constituição Federal, dispositivo que enuncia os direitos individuais, estes erigidos à condição de cláusula pétrea. Ademais, dentro do supracitado artigo, a propriedade é novamente assegurada no inciso XXII e, nessa mesma linha, o inciso LIV estabelece que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

Não se pode deixar de perceber que o cuidado do constituinte pátrio não se restringiu aos citados dispositivos, pois, ainda que indiretamente, a propriedade é resguardada em todo o texto constitucional, a exemplo do direito à herança, ao ressarcimento pelos danos materiais, pelos limites ao poder de tributar, e, especialmente, ao ser elencado no art.170 como um dos princípios da ordem econômica.

O inciso XXIII do art.5º, por sua vez, estabelece que a propriedade deverá atender a sua função social. A própria Carta Magna cuida então de indicar em seu texto o que entende por cumprimento da função social. No parágrafo segundo do art.182, estabelece que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Em seguida, no caput do art. 186, preceitua que a propriedade rural atende à função social quando adequada e racionalmente aproveitada, inclusive em relação aos recursos naturais existentes e à preservação do meio ambiente, quando observadas as disposições que regulam as relações de trabalho e desde que a exploração favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Embora majoritário, não é pacífico na doutrina o entendimento de que a função social seja um limite incito ao exercício do direito individual de propriedade. A questão é bem posta por Manoel Jorge e Silva Neto, para o qual há que se diferenciar a propriedade referida como direito individual (art.5º) daquela estabelecida como princípio geral da atividade econômica (art.170, II). Segundo o professor, a primeira acepção diz respeito ao direito à satisfação das condições mínimas de existência através da propriedade, não possuindo qualquer relação que a função social. Para ele, somente na segunda acepção se demandaria a imposição da função social como exigência ao regular exercício do domínio. Nas palavras do autor, não há razão para vincular a propriedade enquanto direito individual à função social, uma vez que seu mau uso pode ser validamente coibido pelo poder de polícia .

Não é essa, contudo, a posição prevalente. Em sentido diametralmente oposto, entende José Afonso da Silva que a Constituição “só garante o direito de propriedade que atenda a sua função social” . É dizer, a propriedade que não cumpre sua função social não recebe proteção constitucional. Para o festejado doutrinador, as restrições decorrentes do desatendimento da função social indicam que a propriedade “não pode mais ser considerada como um direito individual nem como instituição de direito privado”, pois somente merece guarida quando instrumentalizada na busca de assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social.

De fato, embora tenha surgido como um direito de roupagem liberal, a propriedade, sob o ponto de vista hodierno, há de ser concebida sobretudo como um meio ao atendimento da dignidade humana e da justiça social.

Posição intermediária é apresentada por Dirley da Cunha Jr. e Marcelo Novelino , para os quais a ausência de função social não implica numa total vulnerabilidade da propriedade, mas sim numa menor salvaguarda constitucional. Para estes, mesmo não se atendendo à função social, não se pode admitir invasões de terras por movimentos sociais organizados, ainda que a pretexto de promover a reforma agrária, tampouco supressão legislativa da instituição da propriedade privada ou a retirada arbitrário do direito de propriedade, sem observância do devido processo legal.
Certamente, admitir a absoluta desproteção da propriedade que não atendesse à função social seria permitir tamanha insegurança no seio social que se estaria a comprometer o próprio desenvolvimento do país.

É de se concluir, também, que quer seja pela função social quer seja pelo poder de polícia, a propriedade não se afigura como direito absoluto, assim como não são e não poderia ser absolutos os demais direitos individuais. A relevância desta observação refere-se a necessidade de flexibilizar os tradicionais atributos relacionados à propriedade, a qual era tida como um direito absoluto, exclusivo e perpétuo. Contudo, por se tratar de um direito individual, o estudo dos mencionados limites requer especial cuidado, pois não poderiam estes afetar o núcleo intangível da propriedade, o qual consiste em cláusula pétrea.

Partindo-se da noção de que não há inconstitucionalidade de normas emanadas do constituinte originário, é cediço que as limitações constitucionais à propriedade, dentre as quais estão os fundamentos constitucionais à desapropriação, não podem ser postas em dúvida no que tange à sua validade. Especialmente no que se refere à desapropriação, tem-se que esta mitiga o caráter perpétuo da propriedade.

Não se tem por afastado, contudo, o risco de eventual interpretação conduzir a alguma inconstitucionalidade. Por conta disso, deve o intérprete se valer do “Princípio da Unidade da Constituição”, o qual consiste numa especificação da interpretação sistemática, imputando-se o dever de harmonização entre as normas constitucionais. Justamente na medida em que afasta a hierarquia entre normas constitucionais, impede-se a declaração de inconstitucionalidade de uma norma constitucional originária.

Sendo assim, na mesma medida em que se tem a propriedade como direito individual, o inciso XXXIV do art. 5º possibilita a desapropriação, com base em previsão legal, por necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos na própria constituição. Trata-se, evidentemente, de norma de eficácia limitada, demandando regulamentação infra-legal.

Nos termos do art. 22, inciso II da CF, compete privativamente à União legislar sobre desapropriação, podendo os Estados-membros legislar sobre questões específicas desde que autorizados por lei complementar, nos moldes do parágrafo único do mencionado artigo.

A matéria, então, é regrada pelo Decreto-Lei 3.365/41, o qual foi recepcionado pela atual constituição. Nele são traçados os aspectos procedimentais, regulamentando as etapas a serem percorridas pela administração pública. Entretanto, para o específico caso de desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária, o procedimento demandará contraditório especial, sob o rito sumário, o qual deverá ser estabelecido por lei especial.

Não se pode confundir, porém, a competência para legislar sobre desapropriação, a qual é, conforme já dito, privativa da União, com a competência para executá-la, a qual pode recair tanto sobre a administração direta e indireta, quanto sobre as concessionárias de serviço público ou entes delegados do poder público.

A desapropriação é ato administrativo discricionário, embora, por óbvio, submetido aos ditames legais, ainda mais tendo-se em conta a especificidade do princípio da legalidade na esfera administrativa. Consiste na supressão da propriedade por ato do poder público, este revestido de prerrogativas próprias, afigurando-se, portanto, como ato de império. A aquisição da propriedade, nesse caso, é considerada originária, inexistindo qualquer vínculo com o titular antecedente. Conseqüência natural do quanto exposto é extinção de direitos ou ônus que eventualmente incidam sobre o imóvel.

Da leitura do inciso XXIII do art.5º, se percebe claramente três situações justificadoras da desapropriação, quais sejam, utilidade e necessidade pública e interesse social, devendo a supressão da propriedade ser precedida de prévia e justa indenização em dinheiro, sendo ressalvadas apenas as exceções constitucionalmente previstas. Tais exceções estão elencadas no artigo 182 para a desapropriação urbana, e no artigo 184 para a desapropriação rural.

No caso da desapropriação para fins de utilidade e necessidade públicas, tem a doutrina entendido que em que pesa submeterem-se ao mesmo regime jurídico, diferenciam-se sutilmente quanto ao caráter emergencial da modalidade “por necessidade pública”. Trata-se, por conseguinte, de diferenciação de pequena relevância prática. Merece destaque, no entanto, a diferenciação entre estas duas modalidades e a desapropriação por interesse social.

Nas desapropriações para fins de utilidade ou necessidade pública, o direito de propriedade é suprimido ainda que se esteja cumprindo a função social. É dizer, com base na supremacia do interesse público, retira-se compulsoriamente a propriedade para fins de consecução de objetivos voltados ao bem estar geral. Em tais casos, tendo-se em vista o princípio da isonomia, exige-se do Estado indenização prévia e justa em dinheiro, para se evitar o sacrifício maior de alguns dos administrados em prol da coletividade.

Diverso, contudo, é o procedimento da desapropriação por interesse social, a qual a doutrina costuma denominar de desapropriação-sanção. Esta decorre do descumprimento da função social, dispensando-se a indenização prévia em dinheiro. Se subdivide em desapropriação urbana e rural.

A desapropriação urbana para fins de interesse social recebeu regramento específico no parágrafo quarto do art.182 da CF, sendo da competência municipal a sua realização.

A Constituição Federal, no caso da desapropriação urbana para fins de interesse social exigiu prévia regulamentação da matéria por lei federal. Trata-se do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/01), responsável por disciplinar os aspectos urbanísticos das cidades em geral.

Sabedor do caráter drástico da perda da propriedade, a CF/88 elencou algumas medidas a serem implementadas antes da efetiva desapropriação pelo poder público municipal. Inicialmente, a área a ser expropriada deverá estar incluída no plano diretor, o qual, de acordo com o art.182, parágrafo primeiro da Constituição, é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes.

Com o fito de coibir a especulação imobiliária, cujos efeitos são fortemente sentidos nos centros urbanos, notadamente diante da desorganizada distribuição espacial das moradias, atribui-se ao Município a prerrogativa de impor ao proprietário o seu adequado aproveitamento, o que, para tanto, deve considerar a configuração espacial exposta no mencionado plano diretor e as características do entorno no que tange à forma de utilização da propriedade, sob o aspecto ambiental, social, etc.

Impõe-se, num primeiro momento, o parcelamento ou edificação compulsória do solo urbano. Revelando-se a insuficiência da medida, aplica-se a progressividade no tempo de alíquotas do imposto predial e territorial urbano. Por fim, como última ratio, implementa-se a desapropriação mediante pagamento de títulos da dívida pública resgatáveis em até dez anos.

Merece um breve adendo a possibilidade de se estabelecer alíquotas progressivas de IPTU com caráter fiscal. Antes da EC 29/00, o STF admitia tão somente a progressividade extra-fiscal do IPTU, descrita no parágrafo primeiro do art.156 da CF, justamente voltada ao implemento da função social . A esse respeito, foi editada pelo STF a súmula 668 com a seguinte redação: “É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”.

Percebe-se, por conseguinte, que a progressividade extra-fiscal do IPTU foi estabelecida pelo constituinte originário, ficando a salvo de qualquer questionamento quanto a sua constitucionalidade.

Procedimento diverso é previsto para despropriação- sanção realizada em áreas rurais, a qual é de competência da União, responsável pela implementação de políticas voltadas à reforma agrária. Neste caso, a indenização ocorrerá em títulos da dívida agrária, resgatáveis em até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão. A execução da medida expropriatória será efetuada pelo INCRA – Instituto de Colonização e Reforma Agrária, que é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Agricultura.

O texto constitucional ressalvou da desapropriação rural a pequena e média propriedade rural, quando seu proprietário não possuir outra, bem como a propriedade produtiva. Sobre essa matéria, interessa mencionar recente decisão do STJ sobre a possibilidade de o INCRA promover a desapropriação de imóvel rural cuja área é inferior ao módulo fiscal. Na ocasião, intentou-se buscar o critério mais adequado para se estabelecer a classificação de pequeno, médio ou grande imóvel rural, optando o STJ por levar em conta a área aproveitável em lugar do tamanho do imóvel.

Observa-se que não sem razão a Constituição atribui à União a realização da desapropriação no âmbito rural para fins de reforma agrária, dado à dimensão continental do território brasileiro e a gravidade de conflitos que emergem nesta esfera. Demanda-se, por conseguinte, uma atuação ampla do poder público, sendo fadada ao insucesso eventual tentativa de se fragmentar a atuação estatal nesta questão.

Sobre a responsabilidade civil do Estado decorrente da desapropriação, cumpre citar a diferenciação inaugurada por Celso Antônio Bandeira de Mello entre o que chama de “sacrifício de direito” e a responsabilidade extracontratual do Estado. Nas palavras do autor, seria "necessário discernir, e sacar para fora do campo da responsabilidade, apenas os casos em que o Direito confere à Administração poder jurídico diretamente preordenado ao sacrifício do direito de outrem. Diversamente, consideramos inclusos no tema da responsabilidade os casos em que uma atividade lícita do Estado, orientada para certo fim não necessariamente entrechocante com o direito de outrem, vem, todavia, a compor situação na qual este resulta transgredido, como conseqüência mediata do comportamento estatal lícito” .

Adotando o entendimento acima esposado, infere-se que sendo a desapropriação ato cujo conteúdo próprio é o sacrifício de direito, e não mero efeito colateral de atividade diversa, a indenização atribuída ao proprietário tem como lastro jurídico não a responsabilidade civil extracontratual do Estado, mas o princípio da isonomia e a vedação ao enriquecimento ilícito. É dizer, se a desapropriação é destinada ao bem comum, não se justifica que o expropriado suporte um sacrifício maior que os demais, sendo este, portanto, o fundamento indenizatório.

Ademais, necessário destacar que eventuais abusos de poder não poderão ficar imunes do controle administrativo ou judicial, cabendo reintegração de posse e domínio na hipótese de não ser o bem destinado a qualquer finalidade pública ou simplesmente indenização caso o poder público confira destinação pública ao bem, ainda que diversa daquela que motivou o ato expropriatório – tredestinação lícita.

O Código Civil prevê ainda, em seu artigo 519, que na hipótese de o bem não ser empregado no destino para que se desapropriou, a preferência do expropriado em reaver o bem pelo preço atual da coisa.

Não se pode, por fim, confundir a instituto da desapropriação com o confisco, este previsto na Constituição Federal no art.242 nas hipóteses de cultivo ilegal de plantas psicotrópicas e no caso de bens de valor econômico apreendidos em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes. No primeiro caso, as glebas onde se procedeu ao cultivo ilegal são destinadas ao assentamento de colonos, a fim de que estes realizem o cultivo de medicamentos e produtos alimentícios. No caso de apreensão de bens de valor econômico, estes serão revertidos em prol do tratamento de dependentes químicos e da repressão ao tráfico.

Os casos acima são hipóteses mais graves de descumprimento da função social, pois não consistem apenas na não promoção do aproveitamento desejável do terreno, mas na efetiva utilização do bem no sentido do “deserviço” social. Sobre o tema, o STF já proferiu decisão no sentido de que “a expropriação de glebas a que se refere o art.243 da CF há de abranger toda a propriedade e não apenas a área efetivamente cultivada” .

Em que pesa a existência de detalhado regramento infra-constitucional sobre a desapropriação, estes revelam-se secundários à presente proposta, de modo que os fundamentos normativos que lastreiam o procedimento expropriatório na esfera constitucional encontram-se nos analisados artigos 5º, 182 e 184 a 185 da Constituição Federal, os quais cuidam basicamente da desapropriação para fins de interesse social.

Da analise dos aspectos acima mencionado, conclui-se que a desapropriação, quando realizada em consonância com os preceitos e princípios constitucionais, afigura-se como uma limitação legítima ao direito de propriedade. Isto porque sendo destinada ao interesse público primário, demonstra a preocupação, inexistente nos Estados Liberais, com uma política social envolvendo institutos antes hermeticamente “blindados” pelas disposições dos códigos civis.

Trata-se de salutar opção do constituinte a de vincular a função social à proteção da propriedade, o que, contudo, não suplanta a carência de tratamento mais detalhado da desapropriação para fins de utilidade e necessidade pública.

Aliás, haveria que se conferir expressos limites à supressão da propriedade nos dois casos acima mencionados, sob pena de se permitir uma perigosa amplitude na discricionariedade estatal, passível, inclusive, de corromper o interesse público primário em exclusivamente secundário e submisso ao arbítrio do poder público. Sob esse aspecto, a dignidade da pessoa humana deve ser observada a fim de reduzir a vulnerabilidade dos particulares na hipótese de, por exemplo, o poder público optar pela desapropriação por zona face a sua incapacidade ou desinteresse em instituir contribuição de melhoria na região.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1988 erigiu ao mesmo patamar de direito individual tanto o direito de propriedade quanto o poder-dever do Estado em desapropriá-la quando diante de situações excepcionais pautadas em interesse e utilidade públicas bem como no caso de interesse social. Isso indica o cuidado em coadunar um direito historicamente absoluto e perpétuo, como é o direito de propriedade, com a nova proposta de Estado Constitucional de Direito. Outrossim, não mais se concebe institutos como exclusivamente de direito privados e alheios à eficácia irradiante dos direitos fundamentais.

Percebe-se ainda que a preocupação em preservar o direito de propriedade deve sim subsistir como manifestação de um Estado verdadeiramente democrático, ao qual cabe garantir ao particular o mínimo de segurança jurídica, apta a proporcionar uma existência digna. Além disso, para que se possa caminhar no sentido do verdadeiro desenvolvimento nacional, o qual, por óbvio, não se restringe ao âmbito econômico, o direito de propriedade deve ser assegurado como prioridade.

Sobre esse aspecto, merece crítica, como já mencionado, a escassez de regulamentação constitucional acerca da desapropriação para fins de utilidade e necessidade pública em contraste com o exaustivo tratamento dispensado à desapropriação para fins de interesse social.

Com maior razão, deveria o constituinte se preocupara com a hipótese mais invasiva de desapropriação, ao menos do ponto de vista individual, que é aquela em que a despeito de o proprietário lhe conferir uma função social, prevalece o interesse público na supressão do bem. Ora, uma intervenção de tal monta não pode ser relegada ao arbítrio do poder público que, não raras vezes subverte o interesse público primário em secundário.

Afora isso, percebe-se que o instituto da desapropriação, conforme disposto na Carta Magna, e desde que observados os princípios basilares tanto da administração pública, em particular quanto aqueles que orientam a própria República Federativa do Brasil, é medida estratégica para a construção de uma sociedade menos discrepante e excludente.

8. REFERÊNCIAS

ANDRADE, Flávia Cristina Moura de. Direito Administrativo. 4ª edição revista e atualizada – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. (Elementos do Direito, v.2);

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Saraiva, 2010;

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 11ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001;

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Método, 2008;

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª edição, revista e atualizada - São Paulo: Malheiros Editores, 2005;

SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2006.

http://www.stf.jus.br/portal/informativo/pesquisarInformativo.asp, acessado em 18/07/2011.

http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=44, acessado em 19/07/2011.

domingo, 1 de maio de 2011

Os Estados-membros de uma Federação possuem soberania? São verdadeiros Estados?

A forma federativa do Estado brasileiro se deu a partir da Proclamação da República, com a segregação de um estado unitário, materializando-se o novo modelo na Constituição de 1891. Dentre os pontos comuns, inerentes aos Estados federativos, está a “soberania do Estado federal”, a qual consiste na perda da soberania pelos Estados que ingressam na federação, os quais passam a ser autônomos, de acordo com as regras constitucionalmente estabelecidas e nos limites da sua competência. Nas palavras de Pedro Lenza, “a soberania, por seu turno, é característica de todo o país, do Estado federal, no caso do Brasil, a República Federativa do Brasil” .
O art.18 da Constituição Federal é expresso ao estabelecer que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.
É dizer, embora as unidades componentes da federação, nas quais se incluem a União, os Estamos Membros, o Distrito Federal e os Municípios, sejam autônomas e, portanto, dotadas de auto-organização, autogoverno, autoadminsitração e autolegislação, são desprovidas de soberania, esta exclusiva da República Federativa do Brasil no âmbito nacional.
No que tange à auto-organização, o art.25 da Constituição Federal preceitua que os Estados se organizarão e serão regidos pelas leis e Constituições que adotarem, observando-se sempre as regras e preceitos estabelecidos na Constituição Federal. Quanto ao autogoverno, tem-se as regras para estruturação dos “poderes” legislativo, executivo e Judiciário. Já as regras de autoadministração e autolegislação cuidam das competências legislativas serão legislativas.
Todos os elementos representativos da autonomia dos Estados-membros acima enunciados denunciam o necessário equilíbrio que deve existir numa federação, cujos elementos de controle são, dentre outros, a intervenção federal, a previsão de crime político, vedação ao direito de secessão e a inclusão da forma federativa de Estado como cláusula pétrea.
Por fim, não se pode olvidar que a existência de uma constituição rígida (com base jurídica), garantidora da distribuição de competência entre os entes autônomos é imprescindível para se garantir uma verdadeira estabilidade institucional, essencial à manutenção harmônica da forma federativa de Estado, como é o caso da Constituição de 1988.
Conclui-se, portanto, que para que os Estados-membros fossem verdadeiros Estados, deveriam ser dotados de soberania, o que claramente não se dá nos modelos federativos existentes, a exemplo do brasileiro.

Bibliografia:

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Saraiva, 2010;
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Método, 2008;
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2006.

A Constituição de 1988 considera o Ministério Público função essencial à justiça?

Fazendo um retrospecto histórico- constitucional, é possível perceber que nos momentos em que a democracia fez-se ausente ou enfraquecida, o Ministério Público esteve subordinado a um dos órgãos que exercem poder (legislativo, executivo e judiciário).
A Constituição de 1824 não fez qualquer referência ao Ministério Público, embora o Código de Processo Criminal do Império de 1832 tenha feito menção ao “promotor de acusação”. Já no ano seguinte à Proclamação de República, em 1890, foi editado o decreto de institucionalização do Ministério Público. A Constituição de 1891, por seu turno, posicionou o Ministério Público dentro do Poder Judiciário. Prova disso é que a primeira constituição republicana estabelecia que o Procurador Geral da República deveria ser escolhido dentre os ministros do Supremo Tribunal Federal, sendo inquestionável a submissão do parquet ao judiciário. Na Constituição de 1834, verificou-se a inclusão do MP no capítulo denominado “Atividades de cooperação governamental”, o que levou a parte da doutrina a defender que nesse momento ele integraria o Poder Executivo. A Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, inaugurou um hiato autoritário que se estendeu até 1945, e, talvez por isso, não tenha feito referência ao MP como “instituição”. Com a retomada da democracia, é intuitivo que o MP reassumisse maior autonomia, sendo então tratado como instituição independente. Com o novo hiato autoritário iniciado em 1964, foram promulgadas duas constituições, sendo que na de 1967 o MP integrava o Poder Judiciário, e na de 1969 o Poder Executivo.
No que tange ao tratamento dispensado ao MP pela Constituição de 1988, impende analisar o seu art.127, segundo o qual “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbido-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. (grifos acrescidos)
Embora não se afigure como um “quarto poder”, o Ministério Público exerce atribuições e possui garantias de poder, estas últimas responsáveis por lhe assegurar uma atuação verdadeiramente independente, capacitando-lhe a promover a defesa do regime democrático, o qual não pode ser dissociado de um Estado Constitucional de Direito.
Falar em regime democrático, embora seja também falar em regras inerentes ao sistema eleitoral, é muito mais do que isso. É não permitir que a democracia se corrompa numa “ditadura das maiorias”, e, com isso, zelar pelas liberdades individuais.
O conceito de democracia, portanto, deve abranger o de liberdade, a qual não se restringe ao direito de ir, vir ou permanecer. Envolve a liberdade de consciência e opinião, de crença, de orientação sexual, o pluralismo político, etc.
Ao lado da liberdade, o conceito de democracia inclui o de igualdade substancial, ligando-se à idéia de igualdade de oportunidades e condições.
A democracia fundamenta-se ainda no valor pré e supra-constitucional da dignidade da pessoa humana, a qual, sob o sentido formal, representa o “direito a ter direitos” (que é um direito indisponível) e, sob o sentido material, a garantia, pelo Estado, do mínimo existencial, enunciado no art. 6º da CF.
Conclui-se, portanto, a partir da retrospectiva constitucional resumidamente apresentada e da análise do art.127 da CF, que é umbilical a relação entre independência e autonomia do Ministério Público e o fortalecimento do regime democrático em seu sentido mais amplo. Nesse contexto, a Constituição de 1988, inegavelmente, erigiu o parquet à condição de instituição essencial à democracia da República Federativa Brasileira, pois consolida o Estado brasileiro como um Estado Constitucional de Direito.

Bibliografia:

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Saraiva, 2010;
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Método, 2008;
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2006.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

ADI e ADC são consideradas ações dúplices?

A ADI e ADC são ações que compõem os instrumentos processuais destinados ao controle concentrado e abstrato de constitucionalidade perpetrado pelo STF. A marca maior destas ações é ter por objeto o controle de constitucionalidade de ato normativo em tese, pautado pela generalidade, impessoalidade e abstração. Referem-se, por conseguinte, aos chamados processos objetivos, sem partes, no qual inexiste litígio, uma vez somente repercutem no âmbito dos direitos subjetivos individuais de maneira reflexa. Isto porque o resultado direto e imediato do julgamento de tais ações é estabelecer se determinado ato normativo é ou não constitucional de modo abstrato, erga omnes e vinculante. Em razão disto, há quem diga que o STF, ao julgar determinada norma inconstitucional, estaria atuando como legislador negativo, na medida em que esta decisão, por si só, é capaz de expurgar a mencionada norma do ordenamento jurídico.

É inquestionável que ADI e ADC possuem semelhanças capazes de aproximá-las em diversos aspectos, dentre os quais no que tange ao tribunal competente para sua apreciação (papel atribuído ao STF, na condição de corte constitucional), legitimidade para propositura (a partir da EC.45/04, que modificou o caput do art.103 da CF/88) e o caráter dúplice quanto aos seus efeitos (art.102, parágrafo segundo da CF/88). Este último ponto, em particular, é reforçado pela previsão contida no art. 24 da Lei 9.868/99, segundo a qual “Proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória”. É dizer, a procedência da ADI equivale à improcedência da ADC e vice-versa, razão pela qual o STF passou a considerá-las ações de sinais trocados .

Esse conceito de ações dúplices (ou de sinais trocados) é resultado de uma crescente tendência do constituinte no sentido da padronização das ações voltadas ao controle de constitucionalidade. A manifestação mais expressiva neste sentido veio com a EC. 45/2004, que ampliou o rol dos legitimados para a propositura da ADC, equiparando-os aos da ADI (até então somente o Presidente da República, a Mesa do Senado, da Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República poderiam propor a ADC).

Sucede que a despeito das semelhanças entre tais ações, não se pode ignorar as peculiaridades que afastam uma suposta fungibilidade entre ambas. Enquanto a ADC é destinada apenas à análise da constitucionalidade de normas federais, a ADI pode ter por objeto a inconstitucionalidade tanto de normas federais quanto estaduais. Contudo, a principal diferença entre as ações decorre da presunção de legitimidade incidente sobre os atos normativos em geral, de modo que, diversamente do que ocorre com a ADI, na ADC o Advogado-Geral da União não é citado para defender a constitucionalidade da norma, pois esta já é afirmada na inicial.

Sobre este aspecto, Pedro Lenza traz interessante discussão . Segundo o autor, por serem ações de caráter dúplice, mesmo na ADC haveria que se citar o Advogado-Geral da União, sob pena de violação ao art.103, parágrafo terceiro da Constituição Federal, que estabelece a sua obrigatoriedade quando o STF apreciar a inconstitucionalidade em tese de norma legal ou ato normativo. Necessária é a conclusão no sentido de que apreciar a inconstitucionalidade é também apreciar a constitucionalidade, sendo, de fato, sustentável a tese da obrigatoriedade da citação do Advogado-Geral da União também na ADC.

Interessa pontuar, ainda, o entendimento de André Ramos Tavares, defensor da uma unificação entre ADC e ADI, a fim de se conferir maior coerência no sistema de controle abstrato, uma vez que, para o autor, “teria sido mais corajosa a Reforma do Judiciário se tivesse eliminado essa duplicidade de ações para alcançar os mesmos objetivos. Seria o caso de criar-se uma ação direta de controle da constitucionalidade de leis ou atos normativos. Seu pedido poderia ser tanto num sentido quanto noutro.(...) A padronização atenderia à teoria unitária, que desautoriza uma multiplicidade de ações quando se possa ter apenas uma sem qualquer prejuízo” . Certamente não se justifica a coexistência de ações com caráter dúplice, uma vez que se alcançaria o mesmo resultado prático com a unificação de ambas.

Bibliografia:

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Saraiva, 2010.

TAVARES, André Ramos. ADI versus ADC. Jornal Carta Forense, quarta-feira, 19 de março de 2008, disponível em: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=132. Data de acesso: 16 de novembro de 2010.

Inf. 289/STF, http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo289.htm. Data de acesso: 16 de novembro de 2010.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Pode o legislador infraconstitucional vedar a concessão de tutela de urgência em ações constitucionais?

Pode a legislação infraconstitucional vedar a concessão da tutela de urgência em ações constitucionais?


As ações ou remédios constitucionais inserem-se no âmbito das garantias constitucionais, que, por seu turno, abrangem além de tais ações, os princípios constitucionais (tais como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e a inafastabilidade da jurisdição) e os demais instrumentos protetivos dos direitos declarados no texto constitucional. Apenas a título de ilustração, é possível vislumbrar garantias previstas no mesmo dispositivo no qual o direito por ela é enunciado, de modo a não se restringir as garantias constitucionais, por óbvio, às ações constitucionais.

Tamanha é a importância destas garantias que, como bem pontua Geisa de Assis Rodrigues, “o direito e a sua garantia instrumental guardam para usa própria existência uma verdadeira relação de interdependência” . Ainda nessa linha, o professor Pedro Lenza é preciso ao conceituar tais garantias como “instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos aludidos direitos (preventivamente) ou prontamente os repara, caso violados” .

De fato, pouco relevância prática haveria em ser prever direitos sem o correspondente meio de repúdio a sua eventual agressão, o que enseja a conclusão de que a ameaça ou efetiva violação a um direito constitucionalmente tutelado possui a mesma gravidade para a harmonia da ordem jurídica quando a extinção do seu instrumento garantidor.

No particular, tem-se que as ações constitucionais, espécies que são de garantias fundamentais, constituem ainda garantias individuais, previstas expressamente no art.5º da Constituição Federal (Habeas Corpus – inciso LXVIII, mandado de segurança – inciso LXIX, mandado de injunção – inciso LXXI, habeas data – inciso LXXII e ação popular – inciso LXXIII) . E é justamente por ostentarem esta condição que estas ações recebem especial proteção do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal, responsável por erigi-las ao patamar de cláusulas pétras, razão pela qual não pode sequer ser objeto de apreciação a emenda constitucional tendente a aboli-las .

É de se inferir que esta especial proteção conferida pelo constituinte originário a estas ações, decorra, dentre outras razões, da representatividade destas na configuração da ordem jurídica democrática, propiciadoras do controle judicial antes as ilegalidades e abusos de poder perpetrados pelo Estado em detrimento do particular. É estreita, por conseguinte, a relação entre democracia e ações constitucionais.

Mais uma vez, é esclarecedora a lição de Geisa de Assis Rodrigues ao afirmar que “ é cediço que as ações constitucionais garantem a existência dos direitos e liberdades fundamentais e, por isso, demandam o mesmo regime constitucional (...). Não se admite, portanto, reforma que exclua ou tenda a excluir as ações constitucionais concebidas pelo constituinte em nosso regime” .

Com efeito, padecerá de inconstitucionalidade material toda interpretação ou regulamentação das ações constitucionais que promovam uma limitação indevida à norma inconstitucional. Isto porque, se não foi dado ao constituinte derivado prever normas tendentes a abolir tais ações, tampouco o intérprete ou o legislador infraconstitucional poderão fazê-lo.

Feitas estas observações, indaga-se sobre a possibilidade de norma infraconstitucional vedar a concessão de tutela de urgência no âmbito das ações coletivas.

Para tanto, há que se questionar se tal vedação implicaria em medida tendente a abolir garantias individuais ou tratar-se-ia, apenas, de uma norma limitadora destas. A questão perpassa sobre a delicada tarefa de definir o núcleo intangível das garantias individuais.

O tema foi analisado pelo SFT, no julgamento da ADI – Medida Cautelar 223 que apreciou a constitucionalidade de norma que vedava a concessão de medida liminar em ação constitucional, prevalecendo o entendimento no Ministro Sepúlveda Pertence, segundo o qual não haveria qualquer inconstitucionalidade no fato da lei geral fazer uma limitação, ressalvando, contudo, que no caso concreto poderia restar configurada a inconstitucionalidade da restrição, estando o juiz de primeiro grau livre para apreciar a lide e eventualmente prover a tutela de urgência.

É certo que dificilmente se poderá estabelecer a priori se determinada norma geral e abstrata é limitativa ou tendente a abolir um direito ou garantia individual. Contudo, com a devida vênia ao entendimento da Corte Constitucional, a vedação à tutela de urgência em ações constitucionais revela-se medida excessivamente drástica e, ao que parece, agressora da cláusula pétrea protetiva dos direitos e garantias individuais.

O entendimento do ilustre Ministro deixa transparecer, a despeito da ausência de um julgamento definitivo do STF sobre a questão, uma tentativa de flexibilização de eventual posicionamento em qualquer dos sentidos, de modo que a aferição da constitucionalidade da vedação somente poderia ser feita in concreto, pautando-se na razoabilidade e proporcionalidade da medida em cada situação. Noutras palavras, tais limitações só subsistem se forem razoáveis e proporcionais.

Ainda assim, não se pode desconsiderar que a previsão do parágrafo primeiro do artigo 5º da Constituição Federal estabelece que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (nas quais incluem-se os direitos e garantias individuais) têm aplicação imediata e, assim o sendo, também a sua proteção e garantia devem revestir-se de imediatidade, o que somente poderá se fazer por medidas de urgência. Ademais disso, a própria Constituição admite a tutela preventiva dos direitos fundamentais. Ora, se estes direitos merecem proteção antes mesmo de serem violados, não há sentido em se lhes retirar a tutela de urgência, que em regra é posterior à violação.

Conclui-se, por conseguinte, que não há como se vislumbrar razoabilidade numa previsão que vede a concessão de tutela de urgência em ações constitucionais.

Bibliografia:
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Saraiva, 2010, p. 741.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Método, 2008, p. 90.
RODRIGUES, Geisa de Assis. Reflexões em Homenagem do Professor Pinto Ferreira: As ações constitucionais No Ordenamento Jurídico Brasileiro. Material da 2ª aula da Disciplina Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, Ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional – Anhanguera – UNIDERP| REDE LFG.
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2006, p. 583.

Medida Provisória no sistema de governo presidencialista e o desequilíbrio na repartição funcional dos poderes



A introdução de Medidas Provisórias (antigos decretos-lei) no ordenamento brasileiro foi fruto da inspiração no decreti-legge italiano. Sucede que essa “importação adaptada” de um instituto típico dos sistemas de governo parlamentaristas gerou no Brasil uma sensível discrepância no equilíbrio entre os “poderes” do Estado.
Na Itália, não sendo o decreti-legge convertido em lei pelo parlamento, recai sobre o governo (sobre o Primeiro-Ministro, mais especificamente) a responsabilidade política por sua rejeição, implicando, consequentemente, na sua queda. No Brasil, diversamente, não há qualquer responsabilização do Presidente na hipótese de não ser a Medida Provisória convertida em lei, razão pela qual se verifica uma compulsão do Executivo na sua edição.
Pedro Lenza analisa questão com as seguintes palavras: “A experiência brasileira mostrou, porém, a triste alteração de um verdadeiro sentido de utilização das Medidas Provisórias, trazendo insegurança jurídica, verdadeira ditadura do executivo, governado por inescrupulosas penadas, em situações muitas das vezes pouco urgentes e nada relevantes”[1].
Justamente com o fito de conter essa excessiva edição de Medidas Provisórias, foi aprovado o projeto que deu origem à Emenda Constitucional n. 32/2001[2]. Dentre as alterações introduzidas pela reforma, encontra-se o parágrafo sexto do art.62 da Constituição Federal, segundo o qual se a Medida Provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados da sua publicação, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando.
Questiona-se, então, se a paralisação de todo e qualquer projeto legislativo durante o regime de urgência revela-se compatível com o restante do sistema constitucional. Para responder tal indagação, há que se precisar a abrangência da expressão “deliberações legislativas” no contexto constitucional.
A questão está sendo discutida perante o STF, no MS 27931, impetrado por parlamentares do Congresso Nacional, tendo por objeto prevenir que ocorram deliberações sobre projetos normativos enquanto houver Medidas Provisórias em regime de urgência. Isto porque, segundo o entendimento formalizado diante do plenário da Câmara dos Deputados pelo presidente da Casa, Michel Temer (então impetrado), o regime de urgência somente suspenderia as deliberações de normas que versassem sobre matérias aptas a serem veiculadas por Medidas Provisórias.
Outrossim, nenhum reflexo haveria sobre a votação de projetos de emendas constitucionais, leis complementares, decretos legislativos, resoluções, ou até mesmo sobre leis ordinárias que versassem sobre matérias vedadas às Medidas Provisórias.
Para tanto, Michel Temer sustenta argumentos tanto de ordem política quanto jurídica, com base nos quais o Ministro Celso de Mello indeferiu a liminar pleiteada no referido writ por ausência de plausibilidade jurídica da tese dos impetrantes.
O argumento político lastreia-se, basicamente, na necessidade de se buscar uma solução interpretativa no texto constitucional capaz de evitar a paralisação das atividades do legislativo em razão do número exacerbado de Medidas Provisórias editadas pelo Executivo. Isto porque a velocidade com que são editas tais normas impossibilita que o legislativo as aprecie em tempo hábil a evitar o trancamento da pauta.
O fundamento jurídico, por seu turno, analisa o princípio constitucional da separação funcional dos poderes, segundo o qual os poderes estão delimitados e especificados constitucionalmente, de modo que a função atípica destes deverá ser exercida de forma excepcional e dentro dos ditames constitucionais.
Não se pode olvidar que a Constituição Federal de 1988 surgiu justamente como uma resposta a essa sobreposição do Poder Executivo em relação aos demais poderes. Isto porque, ao fixar a separação de poderes, ela pretendeu impedir que um deles prevalecesse sobre os demais. Portanto, uma interpretação sistemática do dispositivo em análise não pode desconsiderar o mencionado princípio, na medida em que este encerra um dos valores essenciais da Lei Maior, qual seja, o espírito democrático.
Noutras palavras, adotar uma interpretação literal e entender que o regime de urgência impediria a deliberação sobre todas as espécies normativas implicaria num retrocesso às conquistas políticas consolidadas pela atual Constituição Federal.
Há que se ter em mente, então, que a função legislativa é exercida pelo Executivo de forma atípica, devendo ocorrer de excepcionalmente, embora na prática não seja o que efetivamente se verifica. Destarte, por consistir numa exceção, tal competência há de ser interpretada restritivamente.
No entender de Michel Temer, “em matéria legislativa, o Poder Executivo, por meio do Presidente da República, pode editar medidas provisórias com força de lei, na expressão constitucional. É uma exceção ao princípio segundo o qual ao Legislativo incumbe legislar. (...) Então, volto a dizer: toda vez que há uma exceção, esta interpretação não pode ser ampliativa. Ao contrário. A interpretação é restritiva. Toda e qualquer exceção retirante de uma parcela de poder de um dos órgãos de Governo, de um dos órgãos de poder, para outro órgão de Governo, só pode ser interpretada restritivamente”[3].
Conclui-se, então, que uma interpretação sistemática leva ao entendimento de que a expressão “deliberações legislativas” abarcaria somente as leis ordinárias que cuidassem de matérias passíveis de integrar o conteúdo de uma Medida Provisória, sobre pena de grave comprometimento às atividades primárias do Legislativo e uma incongruente e anti-democrática concentração de poder nas mãos do Executivo.


Referências bibliográficas

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, ver. atual. e ampl.. São Paulo: Saraiva: 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008 (pp. 883/899). Material da 1ª aula da Disciplina Poderes do Estado: Poder Legislativo e Poder Executivo, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional – Anhanguera-UNIDERP | REDE LFG.


[1] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, ver. atual. e ampl.. São Paulo: Saraiva: 2010, pg. 478.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008 (pp. 883/899). Material da 1ª aula da Disciplina Poderes do Estado: Poder Legislativo e Poder Executivo, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional – Anhanguera-UNIDERP | REDE LFG, pg.3.