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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

ADI e ADC são consideradas ações dúplices?

A ADI e ADC são ações que compõem os instrumentos processuais destinados ao controle concentrado e abstrato de constitucionalidade perpetrado pelo STF. A marca maior destas ações é ter por objeto o controle de constitucionalidade de ato normativo em tese, pautado pela generalidade, impessoalidade e abstração. Referem-se, por conseguinte, aos chamados processos objetivos, sem partes, no qual inexiste litígio, uma vez somente repercutem no âmbito dos direitos subjetivos individuais de maneira reflexa. Isto porque o resultado direto e imediato do julgamento de tais ações é estabelecer se determinado ato normativo é ou não constitucional de modo abstrato, erga omnes e vinculante. Em razão disto, há quem diga que o STF, ao julgar determinada norma inconstitucional, estaria atuando como legislador negativo, na medida em que esta decisão, por si só, é capaz de expurgar a mencionada norma do ordenamento jurídico.

É inquestionável que ADI e ADC possuem semelhanças capazes de aproximá-las em diversos aspectos, dentre os quais no que tange ao tribunal competente para sua apreciação (papel atribuído ao STF, na condição de corte constitucional), legitimidade para propositura (a partir da EC.45/04, que modificou o caput do art.103 da CF/88) e o caráter dúplice quanto aos seus efeitos (art.102, parágrafo segundo da CF/88). Este último ponto, em particular, é reforçado pela previsão contida no art. 24 da Lei 9.868/99, segundo a qual “Proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória”. É dizer, a procedência da ADI equivale à improcedência da ADC e vice-versa, razão pela qual o STF passou a considerá-las ações de sinais trocados .

Esse conceito de ações dúplices (ou de sinais trocados) é resultado de uma crescente tendência do constituinte no sentido da padronização das ações voltadas ao controle de constitucionalidade. A manifestação mais expressiva neste sentido veio com a EC. 45/2004, que ampliou o rol dos legitimados para a propositura da ADC, equiparando-os aos da ADI (até então somente o Presidente da República, a Mesa do Senado, da Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República poderiam propor a ADC).

Sucede que a despeito das semelhanças entre tais ações, não se pode ignorar as peculiaridades que afastam uma suposta fungibilidade entre ambas. Enquanto a ADC é destinada apenas à análise da constitucionalidade de normas federais, a ADI pode ter por objeto a inconstitucionalidade tanto de normas federais quanto estaduais. Contudo, a principal diferença entre as ações decorre da presunção de legitimidade incidente sobre os atos normativos em geral, de modo que, diversamente do que ocorre com a ADI, na ADC o Advogado-Geral da União não é citado para defender a constitucionalidade da norma, pois esta já é afirmada na inicial.

Sobre este aspecto, Pedro Lenza traz interessante discussão . Segundo o autor, por serem ações de caráter dúplice, mesmo na ADC haveria que se citar o Advogado-Geral da União, sob pena de violação ao art.103, parágrafo terceiro da Constituição Federal, que estabelece a sua obrigatoriedade quando o STF apreciar a inconstitucionalidade em tese de norma legal ou ato normativo. Necessária é a conclusão no sentido de que apreciar a inconstitucionalidade é também apreciar a constitucionalidade, sendo, de fato, sustentável a tese da obrigatoriedade da citação do Advogado-Geral da União também na ADC.

Interessa pontuar, ainda, o entendimento de André Ramos Tavares, defensor da uma unificação entre ADC e ADI, a fim de se conferir maior coerência no sistema de controle abstrato, uma vez que, para o autor, “teria sido mais corajosa a Reforma do Judiciário se tivesse eliminado essa duplicidade de ações para alcançar os mesmos objetivos. Seria o caso de criar-se uma ação direta de controle da constitucionalidade de leis ou atos normativos. Seu pedido poderia ser tanto num sentido quanto noutro.(...) A padronização atenderia à teoria unitária, que desautoriza uma multiplicidade de ações quando se possa ter apenas uma sem qualquer prejuízo” . Certamente não se justifica a coexistência de ações com caráter dúplice, uma vez que se alcançaria o mesmo resultado prático com a unificação de ambas.

Bibliografia:

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Saraiva, 2010.

TAVARES, André Ramos. ADI versus ADC. Jornal Carta Forense, quarta-feira, 19 de março de 2008, disponível em: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=132. Data de acesso: 16 de novembro de 2010.

Inf. 289/STF, http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo289.htm. Data de acesso: 16 de novembro de 2010.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Pode o legislador infraconstitucional vedar a concessão de tutela de urgência em ações constitucionais?

Pode a legislação infraconstitucional vedar a concessão da tutela de urgência em ações constitucionais?


As ações ou remédios constitucionais inserem-se no âmbito das garantias constitucionais, que, por seu turno, abrangem além de tais ações, os princípios constitucionais (tais como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e a inafastabilidade da jurisdição) e os demais instrumentos protetivos dos direitos declarados no texto constitucional. Apenas a título de ilustração, é possível vislumbrar garantias previstas no mesmo dispositivo no qual o direito por ela é enunciado, de modo a não se restringir as garantias constitucionais, por óbvio, às ações constitucionais.

Tamanha é a importância destas garantias que, como bem pontua Geisa de Assis Rodrigues, “o direito e a sua garantia instrumental guardam para usa própria existência uma verdadeira relação de interdependência” . Ainda nessa linha, o professor Pedro Lenza é preciso ao conceituar tais garantias como “instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos aludidos direitos (preventivamente) ou prontamente os repara, caso violados” .

De fato, pouco relevância prática haveria em ser prever direitos sem o correspondente meio de repúdio a sua eventual agressão, o que enseja a conclusão de que a ameaça ou efetiva violação a um direito constitucionalmente tutelado possui a mesma gravidade para a harmonia da ordem jurídica quando a extinção do seu instrumento garantidor.

No particular, tem-se que as ações constitucionais, espécies que são de garantias fundamentais, constituem ainda garantias individuais, previstas expressamente no art.5º da Constituição Federal (Habeas Corpus – inciso LXVIII, mandado de segurança – inciso LXIX, mandado de injunção – inciso LXXI, habeas data – inciso LXXII e ação popular – inciso LXXIII) . E é justamente por ostentarem esta condição que estas ações recebem especial proteção do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal, responsável por erigi-las ao patamar de cláusulas pétras, razão pela qual não pode sequer ser objeto de apreciação a emenda constitucional tendente a aboli-las .

É de se inferir que esta especial proteção conferida pelo constituinte originário a estas ações, decorra, dentre outras razões, da representatividade destas na configuração da ordem jurídica democrática, propiciadoras do controle judicial antes as ilegalidades e abusos de poder perpetrados pelo Estado em detrimento do particular. É estreita, por conseguinte, a relação entre democracia e ações constitucionais.

Mais uma vez, é esclarecedora a lição de Geisa de Assis Rodrigues ao afirmar que “ é cediço que as ações constitucionais garantem a existência dos direitos e liberdades fundamentais e, por isso, demandam o mesmo regime constitucional (...). Não se admite, portanto, reforma que exclua ou tenda a excluir as ações constitucionais concebidas pelo constituinte em nosso regime” .

Com efeito, padecerá de inconstitucionalidade material toda interpretação ou regulamentação das ações constitucionais que promovam uma limitação indevida à norma inconstitucional. Isto porque, se não foi dado ao constituinte derivado prever normas tendentes a abolir tais ações, tampouco o intérprete ou o legislador infraconstitucional poderão fazê-lo.

Feitas estas observações, indaga-se sobre a possibilidade de norma infraconstitucional vedar a concessão de tutela de urgência no âmbito das ações coletivas.

Para tanto, há que se questionar se tal vedação implicaria em medida tendente a abolir garantias individuais ou tratar-se-ia, apenas, de uma norma limitadora destas. A questão perpassa sobre a delicada tarefa de definir o núcleo intangível das garantias individuais.

O tema foi analisado pelo SFT, no julgamento da ADI – Medida Cautelar 223 que apreciou a constitucionalidade de norma que vedava a concessão de medida liminar em ação constitucional, prevalecendo o entendimento no Ministro Sepúlveda Pertence, segundo o qual não haveria qualquer inconstitucionalidade no fato da lei geral fazer uma limitação, ressalvando, contudo, que no caso concreto poderia restar configurada a inconstitucionalidade da restrição, estando o juiz de primeiro grau livre para apreciar a lide e eventualmente prover a tutela de urgência.

É certo que dificilmente se poderá estabelecer a priori se determinada norma geral e abstrata é limitativa ou tendente a abolir um direito ou garantia individual. Contudo, com a devida vênia ao entendimento da Corte Constitucional, a vedação à tutela de urgência em ações constitucionais revela-se medida excessivamente drástica e, ao que parece, agressora da cláusula pétrea protetiva dos direitos e garantias individuais.

O entendimento do ilustre Ministro deixa transparecer, a despeito da ausência de um julgamento definitivo do STF sobre a questão, uma tentativa de flexibilização de eventual posicionamento em qualquer dos sentidos, de modo que a aferição da constitucionalidade da vedação somente poderia ser feita in concreto, pautando-se na razoabilidade e proporcionalidade da medida em cada situação. Noutras palavras, tais limitações só subsistem se forem razoáveis e proporcionais.

Ainda assim, não se pode desconsiderar que a previsão do parágrafo primeiro do artigo 5º da Constituição Federal estabelece que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (nas quais incluem-se os direitos e garantias individuais) têm aplicação imediata e, assim o sendo, também a sua proteção e garantia devem revestir-se de imediatidade, o que somente poderá se fazer por medidas de urgência. Ademais disso, a própria Constituição admite a tutela preventiva dos direitos fundamentais. Ora, se estes direitos merecem proteção antes mesmo de serem violados, não há sentido em se lhes retirar a tutela de urgência, que em regra é posterior à violação.

Conclui-se, por conseguinte, que não há como se vislumbrar razoabilidade numa previsão que vede a concessão de tutela de urgência em ações constitucionais.

Bibliografia:
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Saraiva, 2010, p. 741.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2ª edição, revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Método, 2008, p. 90.
RODRIGUES, Geisa de Assis. Reflexões em Homenagem do Professor Pinto Ferreira: As ações constitucionais No Ordenamento Jurídico Brasileiro. Material da 2ª aula da Disciplina Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, Ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional – Anhanguera – UNIDERP| REDE LFG.
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2006, p. 583.

Medida Provisória no sistema de governo presidencialista e o desequilíbrio na repartição funcional dos poderes



A introdução de Medidas Provisórias (antigos decretos-lei) no ordenamento brasileiro foi fruto da inspiração no decreti-legge italiano. Sucede que essa “importação adaptada” de um instituto típico dos sistemas de governo parlamentaristas gerou no Brasil uma sensível discrepância no equilíbrio entre os “poderes” do Estado.
Na Itália, não sendo o decreti-legge convertido em lei pelo parlamento, recai sobre o governo (sobre o Primeiro-Ministro, mais especificamente) a responsabilidade política por sua rejeição, implicando, consequentemente, na sua queda. No Brasil, diversamente, não há qualquer responsabilização do Presidente na hipótese de não ser a Medida Provisória convertida em lei, razão pela qual se verifica uma compulsão do Executivo na sua edição.
Pedro Lenza analisa questão com as seguintes palavras: “A experiência brasileira mostrou, porém, a triste alteração de um verdadeiro sentido de utilização das Medidas Provisórias, trazendo insegurança jurídica, verdadeira ditadura do executivo, governado por inescrupulosas penadas, em situações muitas das vezes pouco urgentes e nada relevantes”[1].
Justamente com o fito de conter essa excessiva edição de Medidas Provisórias, foi aprovado o projeto que deu origem à Emenda Constitucional n. 32/2001[2]. Dentre as alterações introduzidas pela reforma, encontra-se o parágrafo sexto do art.62 da Constituição Federal, segundo o qual se a Medida Provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados da sua publicação, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando.
Questiona-se, então, se a paralisação de todo e qualquer projeto legislativo durante o regime de urgência revela-se compatível com o restante do sistema constitucional. Para responder tal indagação, há que se precisar a abrangência da expressão “deliberações legislativas” no contexto constitucional.
A questão está sendo discutida perante o STF, no MS 27931, impetrado por parlamentares do Congresso Nacional, tendo por objeto prevenir que ocorram deliberações sobre projetos normativos enquanto houver Medidas Provisórias em regime de urgência. Isto porque, segundo o entendimento formalizado diante do plenário da Câmara dos Deputados pelo presidente da Casa, Michel Temer (então impetrado), o regime de urgência somente suspenderia as deliberações de normas que versassem sobre matérias aptas a serem veiculadas por Medidas Provisórias.
Outrossim, nenhum reflexo haveria sobre a votação de projetos de emendas constitucionais, leis complementares, decretos legislativos, resoluções, ou até mesmo sobre leis ordinárias que versassem sobre matérias vedadas às Medidas Provisórias.
Para tanto, Michel Temer sustenta argumentos tanto de ordem política quanto jurídica, com base nos quais o Ministro Celso de Mello indeferiu a liminar pleiteada no referido writ por ausência de plausibilidade jurídica da tese dos impetrantes.
O argumento político lastreia-se, basicamente, na necessidade de se buscar uma solução interpretativa no texto constitucional capaz de evitar a paralisação das atividades do legislativo em razão do número exacerbado de Medidas Provisórias editadas pelo Executivo. Isto porque a velocidade com que são editas tais normas impossibilita que o legislativo as aprecie em tempo hábil a evitar o trancamento da pauta.
O fundamento jurídico, por seu turno, analisa o princípio constitucional da separação funcional dos poderes, segundo o qual os poderes estão delimitados e especificados constitucionalmente, de modo que a função atípica destes deverá ser exercida de forma excepcional e dentro dos ditames constitucionais.
Não se pode olvidar que a Constituição Federal de 1988 surgiu justamente como uma resposta a essa sobreposição do Poder Executivo em relação aos demais poderes. Isto porque, ao fixar a separação de poderes, ela pretendeu impedir que um deles prevalecesse sobre os demais. Portanto, uma interpretação sistemática do dispositivo em análise não pode desconsiderar o mencionado princípio, na medida em que este encerra um dos valores essenciais da Lei Maior, qual seja, o espírito democrático.
Noutras palavras, adotar uma interpretação literal e entender que o regime de urgência impediria a deliberação sobre todas as espécies normativas implicaria num retrocesso às conquistas políticas consolidadas pela atual Constituição Federal.
Há que se ter em mente, então, que a função legislativa é exercida pelo Executivo de forma atípica, devendo ocorrer de excepcionalmente, embora na prática não seja o que efetivamente se verifica. Destarte, por consistir numa exceção, tal competência há de ser interpretada restritivamente.
No entender de Michel Temer, “em matéria legislativa, o Poder Executivo, por meio do Presidente da República, pode editar medidas provisórias com força de lei, na expressão constitucional. É uma exceção ao princípio segundo o qual ao Legislativo incumbe legislar. (...) Então, volto a dizer: toda vez que há uma exceção, esta interpretação não pode ser ampliativa. Ao contrário. A interpretação é restritiva. Toda e qualquer exceção retirante de uma parcela de poder de um dos órgãos de Governo, de um dos órgãos de poder, para outro órgão de Governo, só pode ser interpretada restritivamente”[3].
Conclui-se, então, que uma interpretação sistemática leva ao entendimento de que a expressão “deliberações legislativas” abarcaria somente as leis ordinárias que cuidassem de matérias passíveis de integrar o conteúdo de uma Medida Provisória, sobre pena de grave comprometimento às atividades primárias do Legislativo e uma incongruente e anti-democrática concentração de poder nas mãos do Executivo.


Referências bibliográficas

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, ver. atual. e ampl.. São Paulo: Saraiva: 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008 (pp. 883/899). Material da 1ª aula da Disciplina Poderes do Estado: Poder Legislativo e Poder Executivo, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional – Anhanguera-UNIDERP | REDE LFG.


[1] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª edição, ver. atual. e ampl.. São Paulo: Saraiva: 2010, pg. 478.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008 (pp. 883/899). Material da 1ª aula da Disciplina Poderes do Estado: Poder Legislativo e Poder Executivo, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional – Anhanguera-UNIDERP | REDE LFG, pg.3.